Foi publicado em 20 de novembro de 2020 o artigo de nossa professora Karina de França Silva Valle no Le Monde Diplomatique Brasil. Karina foi coordenadora de nosso curso As Pensadoras Negras – 2ª edição, que aconteceu em 2021. Neste texto, ela nos oferece um panorama sobre “como as opressões se encontram e se intensificam quando nos deparamos com a realidade da mulher negra e em que momento histórico essa dinâmica se estabeleceu, formando um conjunto complexo de violências diversas que operam entre si, provocando desdobramentos até os dias atuais”.
Leia o texto na íntegra aqui ou abaixo.
É triste e difícil expor as crueldades da escravização de africanos trazidos para o Brasil do século XV ao XIX. Certamente, deve ser vergonhoso, para os descendentes dos escravizadores, reconhecer a crueldade dos seus antepassados. É bem verdade que alguns desses são indiferentes; assim, sem nenhum pudor, continuam reproduzindo as cruéis relações estabelecidas por seus antecessores.
Petronilha B. G. e Silva[1]
Ainda que a ausência de políticas públicas tente inibir a existência de 53% da população brasileira, a comunidade negra – a despeito de todo racismo – criou formas e tecnologias de sobrevivência.
Maitê Freitas[2]
A luta da população negra não deve ser lembrada apenas em novembro porque ela é diária, permanente e atravessa a existência dessa população. Como lembra Carmen Silva, líder do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em suas falas: “Quem não luta, tá morto!”. Mencionamos Carmen porque ela representa a luta de tantas mulheres, negras, mães em busca do direito à moradia, pelo direito de continuarmos vivas.
Como as opressões se encontram e se intensificam quando nos deparamos com a realidade da mulher negra? Em que momento histórico essa dinâmica se estabeleceu, formando um conjunto complexo de violências diversas que operam entre si, provocando desdobramentos até os dias atuais? Qual a importância de combatermos o silenciamento e o esquecimento, componentes esses inseridos pela dominação a grupos considerados subalternos? Proponho uma reflexão sobre essas questões a partir dos conceitos de interseccionalidade e colonialidade de poder.
Em um momento como o atual, em que direitos têm sido negados, em especial o direito à vida, nos cabe uma reflexão atenta ao fato de que os corpos negros são maioria nas estatísticas de óbitos. A experiência coletiva em torno da pandemia do novo coronavírus tornou evidente um sistema que escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Um sistema capitalista que sempre se ancorou em bases raciais para sua amplitude.
Voltarmos o nosso pensamento para este mês de novembro de 2020, implica olharmos para esse ano árduo, admitindo que ele expôs nossas mazelas sociais a uma escala nunca antes imaginada, escancarou uma sociedade que se vale do racismo e do sexismo para angariar riquezas para poucos, enquanto os demais, em especial a população negra, se mantém historicamente relegada à sua própria (Re) Existência.[3]
Neste ano do grito “I can’t breathe”, de George Floyd, que tomou uma proporção mundial e sua morte revela que, diante da sua súplica inaudível pela violência policial estadunidense, ainda muitos corpos negros continuam morrendo da mesma forma. No Brasil, essa ocorrência é diária. Neste ano, por exemplo, o adolescente João Pedro foi morto dentro de casa, no Rio de Janeiro, também vítima da polícia, que, em nome do Estado, dilacera famílias, aniquila o sonho e propaga o horror.
Como bem nos diz bell hooks, segundo o dominador, o corpo colonizado não tem alma, não produz sentido, subjetividade, não tem vontade. Independentemente de termos deixado de ser colônia, as atitudes para determinados grupos de indivíduos continuam as mesmas. Quem detém o poder se utiliza de sua força para oprimir aos corpos considerados inferiores, colocando-os à margem da sociedade e da subexistência.
As atitudes coloniais ainda persistem e a decolonialidade se propõe a pensar e elaborar horizontes possíveis, baseando-se em saberes produzidos justamente por pessoas que se situam nestes lugares. Daí partimos do conceito de colonialidade do poder, construído por Aníbal Quijano (2005) que muito tem contribuído para entendimentos da cruel desigualdade na América Latina. Segundo Quijano, o sistema-mundo moderno/colonial iniciou-se em 1492 com a tomada da América e, desde então, esse modelo econômico se fundamentou na ideia de raça e de hierarquização de indivíduos, atribuindo a esses grupos de pessoas seus respectivos papéis sociais, mediante as diretrizes do poder vigente. Esse sistema-mundo moderno/colonial permanece até hoje e uma característica marcante é como se dá a divisão racial e sexual do trabalho.
Quando nos referimos à divisão do trabalho, logo vem ao nosso imaginário, quem exerce o quê, quem ganha mais, quem ganha menos. O acesso a determinados espaços, quem produz o quê. Bernardino-Costa, nos aponta: “… o chamado capitalismo moderno/colonial eurocentrado refere-se a uma divisão corpóreo geopolítica do conhecimento (…), na qual o corpo colonizado não foi e ainda não é pensado como capaz de geração de conhecimento”.
Uma postura alinhada à proposta da decolonialidade nos provoca a pensar sobre esses processos, sua constituição, atribuição de papéis sociais, sua cruel hierarquização, propulsora de desigualdades, quais são os grupos que mais sofrem e simultaneamente concentram os marcadores sociais da diferença que os fazem mais destituídos de humanidade. Nessa perspectiva, se voltarmos nosso olhar às mulheres negras, essa realidade se revela ainda mais crítica.
Quando refletimos no conceito de colonialidade de poder, transportamos lógicas do passado que irromperam o tempo e permanecem até a atualidade e agem por meio das faltas de oportunidades, miséria e desigualdades. Esse conceito nos dá abrangência necessária, nos fornecendo os subsídios pertinentes para analisar as causas e constâncias das opressões diversas que atravessam determinadas populações, em especial as pessoas negras.
Consideremos, ainda, o conceito de colonialidade de poder em diálogo com a interseccionalidade. A interseccionalidade apoia-se, basicamente, em três pilares: raça, gênero e classe. Não obstante, associa-se a outros elementos, na tentativa interpretativa das mazelas sociais. Como nos explica muito bem Carla Akotirene: “é imprescindível, insisto, utilizar analiticamente todos os sentidos para compreendermos as mulheres negras e “mulheres de cor” na diversidade de gênero, sexualidade, classe, geografias corporificadas e marcações subjetivas.” (Akotirene, 2019). Cabe, aqui, ressaltarmos que a interseccionalidade é lida no feminismo negro como uma possibilidade metodológica e teórica na tentativa interpretativa das diversas opressões inseridas em nossa sociedade.
Nesta luta contra as opressões que se relacionam e se alimentam, cabe-nos exaltar as autoras pioneiras brasileiras na interseccionalidade, com grande participação no feminismo negro brasileiro, por exemplo, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Beatriz Nascimento, e suas devidas contribuições na esfera dos movimentos sociais, legislação, políticas públicas, geração de conhecimento, inclusive acadêmicos. A nós, fica a tarefa do combate ao silenciamento/apagamento tão presente, tanto no âmbito social quanto na manutenção do saber hegemônico. Manter nossa luta ativa e a inspiração viva destas mulheres que vieram antes de nós implica entender suas falas e revisitarmos suas contribuições. Por esta razão, ter mais iniciativas de estudo de mulheres negras é fundamental para o enfrentamento cotidiano das desigualdades que tanto aflige as mulheres. É o caso, por exemplo, do Curso As Pensadoras Negras – 2ª Edição, atividade da Escola As Pensadoras, que acontecerá em 2021 e do tenho a alegria de ser coordenadora.
Neste novembro de 2020, nossa luta não para. Ela é viva! Queremos viver nossas vidas, com nossa humanidade. Afirmarmos nossas (re) existências negras, exigindo da sociedade a reintegração de nossas vidas. É uma tarefa árdua, porém possível e, como nos alerta Angela Davis: “A liberdade é uma luta constante”!
Karina de França Silva Valle, doutoranda do Programa de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC. Mestra em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
COSTA, Joaze Bernardino. Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, n° 1, 137-163, janeiro/abril de 2015.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
Do 13 ao 20: (re) existência do povo negro (caderno de programação). Serviço Social do Comércio Administrativo Regional no Estado de São Paulo – SESC.
hooks, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, Santa Catariana, v. 3, n° 2, 464-469, 1995.
[1] Professora Emérita da Universidade Federal de São Carlos. Professora Sênior do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da UFSCAR. Milita junto ao Movimento Negro Brasileiro. Relatora do parecer CNE/CP 3/2004, do Conselho Nacional de Educação que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
[2] Doutoranda em Mudança Social e Participação Política pela EACH-USP. Mestra em Estudos Culturais, jornalista, atriz e produtora.
[3] Recentemente publiquei um texto no Boletim ANPOCS – CIENTISTAS SOCIAIS – A questão étnico-racial em tempos de crise, com o título: A FACE DA COVID É A FACE DE UMA MULHER NEGRA. http://www.anpocs.com/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2435-boletim-a-questao-etnico-racial-em-tempos-de-crise-n-6. Acesso em 13 de ago. 2020.