Na sociedade patriarcal em que vivemos, a maioria de nós está exposta desde o nascimento a um padrão de relacionamento romântico sexual: heteronormativo e monogâmico.
As histórias infantis, das novelas, dos filmes mais famosos quase sempre giram em torno de um casal de homem e mulher que se casam, têm filhos, vivem juntos e felizes para sempre. Histórias que nunca refletiram a realidade da vida social. E ainda bem que novas produções artísticas e culturais vêm contestando esse modelo hegemônico de relação.
Algumas pesquisadoras já estudam há um certo tempo a falácia dessa heteronormatividade ideal, e suas propostas serão apresentadas neste curso ofertado pela Escola As Pensadoras. Ministrado pela professora e doutora Nirlyn Seijas Castillo, venezuelana, residente no Brasil, feminista, artista da dança, docente, curadora, mãe socioafetiva. Seu trabalho de pesquisa é focado na reativação de artistas latino-americanas do século XX que criaram trabalhos antipatriarcais, discutindo confinamento e exploração de mulheres, estupro, femigenocídio, violência de estado, entre outros temas relacionados.
O curso irá abordar as problemáticas que giram em torno da família nuclear como modelo imposto de organização social no mundo ocidentalizado. Apresentando práticas artísticas e intelectuais que discutem violências desdobradas da estrutura da família nuclear. Conhecendo e discutindo testemunhos de modelos familiares diversos que inspirem outras práticas parentais.
As aulas começam no dia 4 de agosto, e acontecem às sextas-feiras, das 18h às 20h30, e aos sábados pela manhã. Serão seis encontros divididos nas seguintes temáticas:
1. Colonialidade, gênero e raça na organização dos afetos;
2. Família nuclear, patriarcado e propriedade privada;
3. Desigualdade de gênero no trabalho reprodutivo: invisibilização e exploração dos trabalhos de cuidado;
4. Não-monogamias: revoluções na economia das relações românticas-sexuais;
5. Descentralidade do amor romântico e da segurança emocional-econômica vinculada ao casamento nuclear;
6. Utopias Familiares: Pluriparentalidade, Sócio Afetividade e outros imaginários amorosos;
Confira abaixo uma entrevista com a professora e doutora Nirlyn Karina Seijas Castilho Conceição, sobre o curso que irá ministrar e um pouco do tema que será abordado:
A entrevista
As Pensadoras: Qual a contribuição do machismo familiar para a desigualdade?
Dra. Nirlyn Karina: Então, o machismo é um resultado da construção patriarcal e colonial. Essas duas coisas são indiscerníveis, desde o meu ponto de vista, e elas estão entranhadas tanto em homens quanto mulheres. Fazem parte da nossa criação e colocam as mulheres e os homens em desigualdade, primeiro subjetiva. Isso determina micropolíticas das relações, quer dizer, o modo como a gente administra nossas relações na microescala, na escala familiar, na escala dos afetos.
O patriarcado se introjeta na subjetividade e acaba moldando até o modo em que sentimos, percebemos, reagimos; determina escolhas e formas de se relacionar dentro de uma família. É por essa introjeção que reproduzimos, sem nenhuma crítica o modelo de família, colonial e patriarcal (heteronormativa, monogâmica, consanguínea, asexuada, etc.) que serve para a manutenção da propriedade privada, exploração dos corpos, submissão de gênero, etc. Isso se dá de uma forma desigual, na qual os homens teriam maior poder de decisão e maior poder de mobilidade em relação às mulheres, às crianças e aos velhos, e isso beneficia financeiramente e em termos de propriedades o sistema capitalista.
AP: Mudar a forma de ver as relações é uma das soluções para combater a desigualdade?
NK: Sem dúvida. Acredito que os feminismos estão ali para denunciar e deixar em evidência as problemáticas da macroescala e da microescala. As relações interpessoais sendo um dos principais problemas da contemporaneidade. Através dos estudos feministas, vou tendo ideias e práticas para ir me desfazendo das introjeções que nos desvalorizam e que pervertem nossas relações afetivas. E que inclusive nos fazem promover desigualdades e injustiças em relação àqueles que são mais vulneráveis do que a gente. E aí eu estou falando de crianças, adolescentes e velhos.
O feminismo é uma das maneiras de desmontar essa bomba capitalista patriarcal. Por exemplo, quando eu começo a conseguir me relacionar na microescala com a minha família de outro modo, na qual, sobretudo, a gente combate a ideia de propriedade privada, a ideia de acesso obrigatório ao corpo, a ideia de apego emocional e de dependência emocional de uns laços contra outros. Esses mecanismos vão sendo desmontados, um mundo de outras possibilidades se abrem e, de fato, a gente sabota o sistema.
Quero deixar nítido que eu não estou falando aqui apenas de desigualdade de gênero. Meu trabalho vai muito em direção de entender a conexão direta que existe entre o sistema de propriedade privada capitalista e as relações familiares. Reconhecer que esse sistema de propriedade privada capitalista está intrinsecamente relacionado com a desigualdade de gênero e com a desvalorização e outras formas de família, de familiaridade, de afetividade, fora da família nuclear cristã que se estabelece a partir da ideia de que nós somos o núcleo (mais importante) e o resto (todas as outras pessoas e espécies) é outra coisa com a qual não temos compromisso.
AP: Quanto a ideia utópica de família é prejudicial às mulheres?
NK: O que eu aponto como utopias familiares, é a ideia que nós precisamos caminhar e imaginar outras utopias familiares possíveis, fora da família nuclear, heteronormativa, monogâmica e patriarcal.
E nesses termos, a família nuclear monogâmica heteronormativa tem um efeito muito terrível na vida das mulheres, das crianças, dos velhos e também dos homens. Sobretudo porque existe, por exemplo, na base da monogamia a ideia de que as mulheres são as reprodutoras da herança e da propriedade privada. É por isso que elas precisam ser monogâmicas, porque precisam demonstrar o vínculo consanguíneo entre a propriedade do macho e as suas crias. E isso afeta por exemplo, que seja apenas a mãe biológica a única “verdadeira” responsável pelo trabalho reprodutivo de criar, cuidar, educar, manter saudável as crianças que pariu.
A única razão legítima na nossa sociedade para herança é uma herança consanguínea, e não só isso, como herança de cidadania, acesso à nacionalidade, acesso à classe social, e isso é muito nocivo para a sociedade como um todo. A monogamia tem um efeito nas mulheres que não é apenas impedir sua autonomia afetiva, autonomia sexual, de procriação, mas também garantir esse vínculo de herança, que garante a sociedade de classes e que garante a manutenção da riqueza na mão de uma elite que se retroalimenta consanguineamente, quer dizer através de filhos genéticos.
AP: Como você irá abordar essas questões em sua aula?
NK: A utopia familiar é uma família na qual existe uma ideia de rede de afetos, em que a prática da sexualidade não está no centro principal dos afetos, da lealdade, e do compromisso. É uma utopia em que o vínculo amoroso romântico, a procriação, e o cuidado das crias, se desvencilhar da lógica da herança e da propriedade privada. Essa amarração marido-mulher-filho, como empressa ou como vínculo amoroso, foi criada socialmente para poder garantir de forma subjetiva uma monogamia que mantém a propriedade privada nas mãos das mesmas pessoas. A ideia de utopia familiar que eu me interesso em mobilizar seria essa de rede de afetos na qual não se depende exclusivamente do vínculo sexual romântico, nem do vínculo consanguíneo para se contar com um suporte de convívio e de vivência que garante as nossas vidas nesse mundo.
É a ideia que maternagem é muito maior do que maternidade consanguínea. O papel da maternidade não está exclusivamente na pessoa que pariu o filho ou filha ou filhe, e sim numa rede de afetos que entende que aquela criança faz parte de uma rede que garantirá nossa existência no futuro. É uma criação emocional que não idealiza criar um filho para tornar-se mão-de-obra para o capital.
Mas a ideia de que coletivamente nós damos conta de uma saúde emocional e psicológica daqueles que estarão no futuro garantindo nossa vida na terra. Ou por exemplo, uma rede de afetos nas quais a carga de trabalho para se viver, conseguir comida, casa, pagar as contas, obter colo e carinho físico, é dividida por mais de duas pessoas, fora da heteronormatividade. E isso de fato poderá fazer com que tenhamos mais tempo livre, que otimizamos nosso tempo e nossas relações.
Pensar que a minha companheira ou o meu companheiro romântico sexual deve e tem de satisfazer todas as minhas necessidades econômicas, financeiras, amorosas, sexuais, é simplesmente uma loucura, que nenhum corpo pode sustentar. Essa expectativa perverte as relações e as torna doentias. Espalhar essa expectativa entre várias outras pessoas com as quais não necessariamente temos vínculos consanguíneos é muito importante para essa ideia de utopia familiar. A valorização da comunidade e da amizade aqui cumpre um papel fundamental. Me interesso em perguntar, porque as amigas ficam em segundo plano, quando a gente compartilha casa com companheire sexual-romântico? Como combater isso? O que precisa mudar?
Eu vou partir das imagens de artistas que tem denunciado esse formato heterossexual normativo para discutir justamente o momento em que a gente está. E vou caminhar nessa ideia de quais seriam as possibilidades das relações amorosas sexuais, das relações de amizade, o papel da amizade nesse lugar, o papel da maternagem e da paternagem como coletividade e do cuidado dos velhos e das velhas.
AP: Quais autoras e teorias você vai usar para apresentar essas ideias?
NK: Rita Segato, William H. Whyte, Angela Davis são referências primordiais, mas tem muitas outras, como a Margarete Rago, o Wilheim Reich, a Bell Hooks, etc. Contudo, minha abordagem neste curso partirá muito da minha experiência pessoal e do coletivo com quem construo minha vida.
AP: Quem são privilegiados com esses ideais de famílias e relações?
NK: Os privilegiados com as ideias de famílias heteronormativa, monogâmica são as elites econômicas e políticas no mundo atual. A gente está falando de uma construção que dá estrutura ao sistema econômico capitalista, extrativista, colonial que a gente tem no mundo atual. Então os privilegiados são os que se beneficiam desse sistema.
Para mim, não interessa tanto o privilégio micropolítico de um homem dentro de uma família. Ele é e faz parte dessa máquina, que é muito mais poderosa e da qual a gente estar consciente, fazer nossa parte para ir desmontando nas nossas vidas e na nossa micropolítica, esse monstro que é o sistema colonial, patriarcal, extractivista.