O feminismo negro possui grandes e importantes referências estadunidenses, como bell hooks, Patrícia Hill Collins, Angela Davis, são nomes sempre lembrados quando falamos desse tema. Mas por que tão poucas vezes as pensadoras negras latino-americanas são lembradas? Inclusive já foi apontado e criticado por Angela Davis, em uma de suas passagens pelo Brasil, a filósofa falou sobre isso em um evento que participou em 2019.
“Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia González do que vocês poderiam aprender comigo”, afirmou Angela Davis, durante lançamento do seu livro “A liberdade é uma luta constante”, publicado pela editora Boitempo, no auditório do Sesc Pinheiros, em São Paulo.
Essa é a proposta do curso da Escola As Pensadoras, Feminismo Negro Latino-americano: Interseções de saberes para imaginar utopias latino-americanas, ministrado pela professora Yarlenis Ileinis Mestre Malfrán. A pesquisadora e pós-doutora irá apresentar em suas aulas quais são as pensadoras negras latino-americanas e o que elas produzem e estudam sobre o tema. Um feminismo centrado nas vivências brasileiras e latino-americanas, que também são frutos da construção sócio-histórica da região.
O pensamento feminista negro latino-americano é um espaço fundamental de união e troca de saberes para se entender e analisar criticamente o racismo em sua relação com o gênero, além de traçar a ligação desses fatos com as normas e os padrões estabelecidos nas atual sociedade. A disciplina busca retraçar tematicamente e também do ponto de vista genealógico, os esforços do pensamento feminista negro latino-americano (considerando suas pontes com saberes feministas negros norte-americanos) na construção de políticas emancipatórias, projetos de justiça social, nos territórios de América Latina e do Caribe.
Seu objetivo é ofertar subsídios teóricos para uma localização do feminismo negro latino-americano, mapeando suas continuidades e rupturas com o feminismo negro de matriz estadunidense enquanto marco histórico precursor. Além de contextualizar o feminismo negro latino-americano, algumas das suas contribuições teóricas específicas e suas potencialidades políticas para inspirar mudanças efetivas.
Yarlenis Ileinis Mestre Malfrán
A professora nascida em Cuba é psicóloga social da Rede de Pesquisadores sobre Saúde Única em Periferias, da Universidade de São Paulo (USP). É doutora em Ciências Humanas, na linha de estudos de gênero, pela Universidade de Santa Catarina (UFSC) e pós-doutora em Saúde Única em periferias urbanas de São Paulo, pela USP. Possui mestrado em Intervenção Comunitária pelo Instituto Superior de Ciências Médicas de Habana, Cuba, e graduação em Psicologia pela Universidade de Oriente, Cuba.
Lecionou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades no curso de graduação em Psicologia da Universidade de Oriente e foi professora Visitante na Universidade de Mindelo, em Cabo Verde.
Sua experiência de pesquisa é na área de feminismos e estudos de gênero, estudos decoloniais e políticas públicas de saúde. Suas publicações recentes tratam de interseccionalidade, saúde como objeto de disputa política, teorias feministas antirracistas, estudos trans, e as relações entre epistemologias, corpos, políticas e poder em sociedades latino-americanas.
Confira abaixo uma entrevista com a professora Yarlenis e como será seu curso na Escola As Pensadoras:
As Pensadoras: Como o Brasil se insere no debate do feminismo negro latino-americano?
Yarlenis Mafra: O Feminismo Negro brasileiro emerge no contexto de lutas contra a Ditadura Militar (1964-1985), mas em diálogo com movimentos libertários do contexto internacional que emergiram com força nos anos 60 do século XX, tais como os Panteras Negras e as lutas contra as ditaduras militares na América Latina. Este feminismo negro brasileiro molda, em grande medida, o percurso do feminismo negro na região, ao propor categorias analíticas (amefricanidade e atlanticidade cunhadas por Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento) que subsidiam as análises de questões de interesse dos feminismos negros latino-americanos. O feminismo negro brasileiro propõe uma gramática singular que é fundamental na construção do programa de luta feminista na nossa região (Da Silva, Ariana; Mbandi, Nzinga, 2022)
AP: Quem foram as precursoras do pensamento feminismo negro latino-americano? E quando começaram?
YM: Lélia Gonzalez é considerada uma precursora do feminismo negro latino-americano, na medida em que suas propostas analíticas sobre a forma em que se constitui o racismo nas sociedades latino-americanas e seus efeitos nas populações afrodiaspóricas e indígenas, expandem e aprofundam, por exemplo, as análises de gênero realizadas no marco de um feminismo ocidentalizado. Além disso, seus trabalhos recuperam as trajetórias de luta e resistência das comunidades africanas ao colonialismo europeu imposto nos países da região.
AP: Quais as pensadoras atuais do feminismo negro latino-americano?
YM: São várias e seria impossível mencionar todas. Iremos trabalhar nas minhas aulas com contribuições de Lélia González, Beatriz Nascimento, Ochy Curiel, Yuderkys Espinosa, dentre outras.
AP: Qual a diferença entre o feminismo negro latino-americano e o estadunidense?
YM: Uma das diferenças entre o feminismo negro de matriz estadunidense e o feminismo negro latino-americano é que as análises desenvolvidas por este último acerca do papel dos sistemas de dominação (gênero, raça, classe e outros) são vinculadas à colonização enquanto processo sócio-histórico, em que tais matrizes de dominação foram impostas. É por isso que o feminismo negro no nosso contexto é sobretudo um esforço analítico e de transformação das condições sócio-históricas que impuseram hierarquias epistémicas, de gênero, cishtererosexuais, geopolíticas, económicas, coloniais etc.
AP: Quais contribuições as pensadoras feministas negras estadunidenses deram às feministas negras latino-americanas?
YM: As pensadoras feministas negras não deram, no sentido de uma dádiva ou oferecimento, contribuições às feministas latino-americanas; é um equívoco formular a questão nesses termos. O feminismo negro estadunidense é, por si próprio, um projeto de deslocamento de um feminismo hegemônico branco e burguês que historicamente obliterou as mulheres negras e suas questões. Desde as críticas de bell hooks a Betty Friedan, as críticas de ângela Davis ao movimento sufragista, que mostrou seu racismo contra a comunidade negra, observamos que mesmo situado no norte global este feminismo negro questiona a cumplicidade desse feminismo branco e burguês com a manutenção de situações de dominação. O feminismo negro estadunidense oferece subsídios para análises mais aprofundadas das situações de opressão, assim como para outros horizontes de luta por emancipação e liberdade (diferente à reinvindicação de igualdade de um feminismo mainstream). Essas contribuições reconfiguram o feminismo como um todo e não servem apenas às feministas latino-americanas.
AP: Como o pensamento feminista negro latino-americano contribui para mudanças na sociedade brasileira?
YM: Um bom exemplo disso é a apresentação de Sueli Carneiro na Audiência Pública convocada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski sobre a constitucionalidade das cotas para negros no ensino superior em 5 de março de 2010. Os debates feministas negros no Brasil não são feitos no vácuo, eles são potentes ferramentas de luta contra as desigualdades e para a construção de um projeto de sociedade que não esteja pautado no racismo, no cissexismo, na exploração do trabalho, no genocídio contra a população negra, etc.
AP: A quais outros movimentos o feminismo negro se une?
YM: Historicamente temos observado alianças entre o feminismo protagonizado por mulheres negras e outros movimentos e articulações políticas. Tem-se construído alianças com o movimento negro, indígena, quilombola…
AP: O que e como a troca de saberes entre mulheres negras latino-americanas contribui para o feminismo negro?
YM: Se considerarmos que as produções de feministas negras latino-americanas e caribenhas historicamente têm tido menos visibilidade e alcance na sua circulação, elas têm sido alvo de deslegitimação-epistemicídio. Podemos dizer que isso é fruto da colonialidade do saber, e que de fato há contribuições muito potentes das feministas negras da América Latina e do Caribe – muito sintonizadas com a realidade dos nossos territórios. Como é a ideia de uma Améfrica Ladina da Lélia González, que não encontramos nas produções das feministas negras estadunidenses.
Justamente porque os feminismos negros da nossa região têm como ponto de reflexão as condições sócio-históricas de formação da nossa região, nomeadamente a colonização europeia e seus efeitos.
Concluímos que as trocas entre mulheres negras latino-americanas, expandem os limites do feminismo negro, assim como expandem as análises decoloniais (como mostra o trabalho de Yuderkys Espinosa intitulado- Por qué necesitamos un feminismo descolonial?-), e criam pontes com vertentes feministas latino-americanas como o próprio transfeminismo brasileiro (vejam-se os trabalhos de Letícia Nascimento e Jaqueline Gomes de Jesus, transfeministas negras brasileiras). E isso contribui para a sua difusão, estimulam seu potencial de atravessar fronteiras e de continuar criando possibilidades de diálogos sul-sul.
AP: Quais as contribuições de pensadoras latino-americanas e caribenhas ao pensamento feminista da região sul global?
YM: Alguns exemplos: O conceito de sistema moderno/colonial de gênero de Maria Lugones. Mesmo que Lugones não se situe num quadro de pensamento feminista negro, é um outro entendimento do gênero distinto ao de um feminismo ocidental e muito sintonizado com a realidade de América Latina.
Ochy Curiel: a sua proposta da Antropologia da dominação, pode ser considerada como uma estratégia metodológica que permite elucidar o modo como a lei reinscreve a norma heterossexual no corpo nacional, para produzir tantos efeitos normalizadores de modos de vida, e exclusões. Essa é uma contribuição particular de Ochy Curiel no seu livro “La Nación heterosexual”.
Se bem que há outras feministas lésbicas, brancas e do norte global como Monique Wittig e Adrienne Rich já tinham apontado que a heterossexualidade é um regime político, e não apenas uma orientação do desejo e das práticas sexuais.
Ochy Curiel expande as análises quando insere esta discussão nas engrenagens estatais tais como a Constituição da Colômbia, mostrando como o exercício do poder do Estado opera com construções do campo simbólico (imaginários morais de família heterossexual) para definir a cidadania.
Djamila Ribeiro: Lugar de fala; Lélia González: Amefricanidade, dentre outras.
AP: Quais as potencialidades políticas do feminismo negro latino-americano?
YM: Levando em consideração a persistência do racismo nas nossas sociedades latino americanas e caribenhas (um racismo que Lélia González explicou em diálogo com Fanon como um racismo disfarçado- no racismo latino-americano a alienação é alimentada através da ideologia do branqueamento cuja eficácia está nos efeitos que produz: “o desejo de embranquecer, de limpar o sangue) podemos reconhecer a relevância do pensamento feminista negro para realizar essas análises, já que as suas ferramentas analíticas permitem-nos continuar esgarçando os jogos biopolíticos que buscam consolidar o legado colonial.
Precisamente por isso, podemos olhar para o feminismo negro (a partir e além da América Latina) como um grande projeto feminista negro transnacional, como um espaço de saberes hifenizados, uma polifonia de vozes que abraça as contribuições dessas precursoras do norte (Sojourner Truth, Angela Davis, bell hooks) num diálogo com Lélia González, Yuderkys Espinosa, Ochy Curiel, Winnie Bueno, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro. Somos mulheres negras na América do Norte, Caribe e América Latina marcadas pela opressão e pelo racismo, mas com um legado de luta, de resistências e persistências.
Concordo com Luiza Oliveira e Fátima Lima quando no texto “A vitalidade dos Feminismos Negros” (2020), elas destacam que estes são territórios de práxis e epistemologias, que têm atravessado o espaço, tempo, as fronteiras geográficas, figurando lugares vitais e relevantes na transnacionalidade dos feminismos.
Elas acrescentam: “Dizemos feminismos negros pois apostamos em possibilidades plurais que emergiram e se consolidaram, levando em consideração as dimensões históricas, geográficas, culturais e políticas que produziram movimentos situados e movimentos que romperam fronteiras. Feminismos negros são projetos e apostas políticas, éticas e estéticas de produção de outro mundo, que não seja estruturado, principalmente pelas práticas racistas e sexistas. Daí sua força vital: a disputa de um futuro que seja diferente do que já está dado pelas condições de opressões e assimetrias que atravessam as vidas das mulheres negras”.
AP: Quais autoras e materiais você vai usar nas suas aulas? Estão mencionadas na Ementa
YM: Livros e produções de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Ochy Curiel, Yuderky Espinosa, Mara Viveros, Beatriz Nascimento, Patrícia Hill Collins, Angela Davis e Sonia Alvarez.