Paula Gabriela Mendes Lima
Há alguns meses iniciamos o processo eleitoral para os pleitos municipais, passamos pelos períodos das “janelas dos partidos”, das formações políticas mais intensas, das convenções partidárias, dos registros eleitorais, etc. No dia 16 deste mês, começamos as etapas das campanhas eleitorais em que as candidatas e os candidatos se apresentam e buscam convencer os eleitores de que são as melhores escolhas para os cargos das prefeituras e das câmaras municipais. Todo este percurso está marcado, especialmente este ano, por um debate fundamental: a participação paritária das mulheres.
Percorri algumas cidades para conversar com as mulheres que estão na política e com as comunidades, participei de pesquisas qualitativas e quantitativas, ensinei e aprendi muito (ainda estou aprendendo, na verdade) sobre este tema e a expectativa de todos é que em 2024 teremos mudanças importantes. Mudanças que me parecem perceptíveis hoje diante das manifestações, já nesses primeiros dias das campanhas eleitorais, de um número expressivo de mulheres que estão movimentando candidaturas efetivas, o que não era comum na maioria dos municípios em que elas participavam das chapas eleitorais, mas de forma fictícia.
Mulheres nas chapas eleitorais é uma obrigatoriedade desde 1995, mas apenas em 2018 podemos afirmar que começamos a levar a sério este direito, determinando por lei e por decisão jurisprudencial que cada chapa partidária seja composta por, no mínimo 30% de mulheres em sua composição e, no máximo, 70%. Essa é a porcentagem do que chamamos de “cotas das nonimatas” e a sua não observância tem consequências graves como a cassação de toda a chapa de um determinado grupo partidário.
Além disso, desde 2018, também foi instituído no ordenamento jurídico-político as cotas dos Fundo Partidário e as cotas do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas. Tratam-se de ações afirmativas que visam dar efetividade a participação da mulher na política, pois determina que 30% de ambos os fundos sejam destinados à campanha eleitorais de mulheres. A distribuição desses recursos é uma tentativa de superar a desigualdade histórica entre homens e mulheres no tocante à participação delas nos espaços estratégicos de decisão.
Após 2020, ainda, temos mais novidades como a determinação de que haja participação proporcional equitativa nos debates eleitorais (Lei nº 14.211/2021), a fixação da proporção de 30% a ser observação no tocante a difusão e promoção das mulheres nas propagandas gratuitas (Lei nº 14.291/2021), bem como mudanças constitucionais que dispõe sobre a relação entre a votação nas mulheres e a distribuição do fundo partidário (alterações propostas pela Emenda Constitucional 111/2021).
Sabemos que há outros grandes debates sobre o tema que devem ser positivados em normas legais, como a aclamada cota de cadeiras e a possibilidade de utilização dos fundos para o apoio às candidatas com as constantes tarefas do cuidado, as quais ainda as sobrecarregam. Contudo, temos que comemorar os avanços e nos mantermos numa postura atenta a cada ação ou omissão que traga quaisquer obstáculos a efetiva participação paritária das mulheres nas eleições de 2024. Vejo quase como um trabalho de formiguinha, que deve ser realizado com uma lupa que nos permita ver, muitas vezes, o que é sutil e que podemos chamar de violência política de gênero.
A violência política de gênero é um fenômeno que sempre existiu, pois se trata de condutas cuja finalidade é impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos das mulheres, incluindo-se qualquer distinção, exclusão, restrição ou depreciação com base no estereótipo de gênero. Ela possui diversas variáveis, apresentando condutas nas quais a condição de sexo emerge como determinante.
Essa forma de violência deve ser compreendida em contraste com o poder. Na segunda parte do ensaio “Da Violência”, de Hannah Arendt (2006), a filósofa afirma que as questões sobre a violência permanecem obscuras no campo da política, sendo que tradicionalmente os teóricos políticos articulam política, poder e violência como fenômenos correlatos, e não em contraste. Mas Arendt propõe que o poder seja desvinculado da ideia de dominação e mando, diferenciando-o da ideia de força e violência.
Poder é a “capacidade humana não somente de agir, mas de agir em comum acordo.” Ou seja, o poder é um dispositivo positivo relacionado à possibilidade de alguém participar e influenciar as tomadas de decisões coletivas de determinada coletividade. A violência, ao contrário, é um dispositivo com valor negativo, pois se refere à ausência desse poder de agir para a construção de algo comum. É a negação ou exclusão da participação de pessoas ou grupos nos espaços políticos.
Essa violência política nos parece introjetada nos processos políticos quando se pensa nas tensões, obstáculos e resistência ao gozo dos direitos políticos pelas mulheres. Há algo nesse processo e no corpo político que rechaça a assimetria entre homens e mulheres como uma relação de igualdade, convertendo essa diferença em hierarquia e desigualdade com fins de dominação, de exploração e opressão. E isso é um processo histórico que está na fundação da constituição do ser mulher na sociedade, como algo estrutural. O corpo político converte a diferença em desigualdade e a desigualdade em relação entre superior e inferior.
A violência política de gênero está na estrutura social moderna fundada no patriarcado, ou melhor, na dominação masculina. Ela é tudo que é posto e falado como “desafios e obstáculos” para as mulheres na política, pois são, na verdade, formas de cercear ou anular a possibilidade de a mulher ter poder. E o poder é, como visto, a possibilidade e a capacidade de a mulher participar e deliberar de forma livre nos espaços públicos. Vejam que a sub-representação, a exclusão política, o silenciamento, a opressão, os discursos sobre a não capacidade da mulher, a falta de acolhimento, o racismo, o etarismo, o ambiente de insegurança, a desproporcional divisão de tempo do trabalho reprodutivo, o machismo institucional, a solidão, a sobrecarga, a não distribuição equânime de recursos, dentre outras variáveis, são formas de manter a mulher longe do espaço políticos e do locus de decisões sobre o bem comum. Ou seja, são formas de violência política de gênero.
O importante agora é estarmos unidas e imbuídas da tarefa do enfrentamento dessa violência para conseguirmos que todas as conquistas e avanços sobre a paridade de participação se transformem em números de cadeiras ocupadas por mulheres nos diversos municípios brasileiros. Sugiro que todas nós, candidatas e cidadãs, busquemos conhecer as normas que regem essa paridade, estejamos cientes dos diversos canais de denúncias e, principalmente, que busquemos união para a luta da efetividade do direito político das mulheres de efetiva participação nos espaços políticos.
O enfrentamento dos desafios que todas as candidatas terão nos próximos dias diz sobre a luta de direitos de todas nós. Estejamos juntas, atentas e fortes. E boa sorte para as nossas candidatas.
Paula Gabriela Mendes Lima
Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG; Consultora Legislativa da ALMG e Coordenadora de Pesquisa do projeto “De Olho nas Urnas: Candidaturas de mulheres e monitoramento da igualdade de gênero nas eleições de 2024”, realizado pela UFG em parceria com Observatório Nacional das Mulheres na Política.