Por: Mary Garcia Castro
O estado da arte sobre maternidade (ver nota 2) indica que muito do produzido sobre maternidade escorrega em generalizações que marginalizam tanto a história, os processos de dominação molar como a força da cultura, de pertenças étnicas e dos afetos e que se por um lado em gênero, pode a maternidade como construção social ou instituição (ver Rich 1995) reproduzir dominações moleculares, vitimizando mulheres, por outro lado tem a potencialidade de colaborar em resistências e nichos de poderes derivados de sentidos de cuidados, inclusive para a reprodução social crítica ao capitalismo (Federici, 2019 e Arruza, 2019), Mesmo sem se realizar biologicamente, mas como afeto-a maternagem-colabora para a reprodução cotidiana da família, ou seja para a reprodução social na micro política, inclusive por socializações (Battacharya, 2023) o que em representações de mães e filhos adquire distintos sentidos.
Assim se de fato a maternidade e a maternagem como dimensões do familismo, ideologia que aprisiona mulheres, por estereótipos e culpas, insisto, pode como afeto abrir as portas do privado, quando as mulheres se jogam em lutas contra violências do Estado, como o fazem movimentos de mães pela justiça (parte de estudos de caso no estudo mencionado na nota 2) ou por impulsionar socialização dos filhos para resistências.
No plano da sexualidade, se em princípio as mulheres seriam consideradas como objetos sexuais ou como mães, ou seja, como Evas ou Marias, já as mulheres negras não seriam nem Marias nem Evas, mas coisificadas de acordo com a vontade do outro, o senhor de escravos, em tempos de antanho, o que paga ou pode pagar, ou o expectador, hoje. Como combinam as mulheres negras pobres dimensões de gênero com luta por sobrevivência e cuidados de seus filhos, inclusive contra violências do Estado?
Premissa estabelecida por alguns feminismos, de que a maternidade é instrumento patriarcal de controle social dos corpos das mulheres a serviço do poder dos homens, não é a melhor maneira de se explicar a origem da opressão que envolve o maternar negro. Tanto as dores quanto as vantagens da maternidade, no que diz respeito às mulheres negras, possuem um viés especifico, sobretudo se pensarmos que as matrizes da maternidade na concepção ancestral africana não é generificada e não possui um sentido individualista (tese desenvolvida por Oyèwùmí, 2015, entre outras.)
A maternidade pode ser fonte de redenção, potência e afeto, mas também pode ser fonte de opressão, sobretudo por conta dos efeitos colaterais da precarização das condições de vida que afetam mulheres negras. No Brasil mais se complica por se ter a família, unidade quase sagrada, e na orientação familista, sacrifícios são impostos com sentido de gratificação às mulheres.
Collins (2019), citada por Borges (2021) destaca além de heranças culturais, referências ao sagrado, como por condições históricas, como o passado escravocrata e atuais colonialidades imprimiriam formas de vivencia da maternidade singulares para as mulheres negras, como a combinação entre papel de provedora e cuidadora, apelo para a família extensa quanto a cuidados, maior probabilidade do exercício de uma maternagem como mãe solo e por ‘super afeto’.
Sobre a potência da maternidade, que vem de um imaginário por doxa Yoruba, traz Borges (2021) observação de Oyèwùmí (2005):
Tal clamor por sentidos, quer ancorados em cosmo percepções que chegam do sagrado quer da materialidade do vivido, da maternidade entre mulheres negras, são explorados tanto em autoras africanas (ver entre outras como naquelas do feminismo negro e por alguns romances da literatura brasileira contemporânea, como os escritos por Conceição Evaristo (2016) e Carolina de Jesus (2014).
Família e maternidade são temas que se entrelaçam, enredam-se e na forma de se enlaçarem, anulam ou afirmam processos de emancipação feminina, sendo que o mais comum na literatura feminista corrente em especial até finais dos anos 90, é ter como antítese para tal emancipação, a maternidade, em especial pela sua construção social naturalizada, como dever da mulher.
É focalizando o constituinte afetivo da família que as feministas vão apresentar críticas mais consensuais, já que o amor romântico e a suposta amorosidade das mulheres seriam tidos como coadjuvantes de assimetrias de poder e dependências, qualidade negativas à autonomia, inclusive emocional, das mulheres.
Já Chodorow (1978) chama atenção para a importância da ética do cuidado para o desenvolvimento da criança, e critica a tendência de algumas feministas discutirem teorias sobre a maternidade sem discutir teorias sobre infância e desenvolvimento da criança. Para ela e Susan Contratto (1982, p.71), em artigo intitulado “A fantasia da mãe perfeita”: “precisamos construir teorias que reconheçam colaboração e compromisso, assim como conflitos”, contudo ao criticar o conceito de “boa mãe” desenvolvido pelo psicólogo Winnicott (ver Castro, 2015), aquela autoras defendem que: “A fantasia da mãe perfeita tem levado a uma opressão cultural das mulheres em interesse por uma criança, cujas necessidades são também fantasiadas”. (Chodorow e Contratto 1982, p.72)
De fato, a dependência histórico-político-cultural para os sentidos dados pela mulher à maternidade e formas de seu exercício são mais sublinhadas por autores feministas ocidentais (e.g. Rich, 1995), em especial considerando esses tempos. É quando Rich, por exemplo, considera que para a mulher poder viver a maternidade e a maternagem de forma prazenteira muitas mudanças teriam que ocorrer, como a apropriação do corpo, sexualidades e vontades de forma crítica ao socialmente instituído, pelas mulheres. já Badinter (2011, p. 21) sublinha mudanças:” O individualismo e a busca de plenitude pessoal predispõem as futuras mães a se fazerem perguntas que elas não se faziam no passado. Uma vez que a maternidade não é mais o único modo de afirmação de uma mulher, o desejo de filhos pode entrar em conflito com outros imperativos”.
Pela ideologia da maternidade/familismo, a mulher mãe teria a obrigação de se enquadrar a uma idealizada noção do que seria uma boa mãe, sendo responsável pela trajetória de vida psicológica e, inclusive para o senso comum, material dos filhos e filhas, mesmo quando tem seu comportamento, horizontes simbólicos, liberdade de circulação e acesso a oportunidades limitados por uma sociedade pautada em uma dominação masculina: “crenças em uma super poderosa mãe sustenta um etos cultural que culpabilizaria as mães e a fantasia da perfeição maternal”. (Chodorow e Contratto, 1982, p. 55) Também em Rich (1995) tal posicionamento. Vale a crítica ao paradoxo de correntes feministas que sublinhando o caráter relacional de gênero, ou seja como a mulher na família se autoconstrói ou se auto identifica na relação com o outro, pelo outro, omitem que a díade mãe e filho, também envolve relações sociais, simbólicas e de afeto que ao mesmo tempo que a autoconstrução como o ser mãe, por exemplo, se projeta no outro, no caso a criança, também se autoconstruiria nessa relação. No afã de desconstruir estereótipos que atariam o destino da mulher ao de ser mãe, a potencialidade da relação mãe-filho tanto para a mãe como para o filho e principalmente para a filha, inclusive para a subversão da ordem patriarcal de gênero e entre gerações, foi pouco explorada nos escritos feministas, mais preocupados com a ‘tirania’ da maternidade. Destaco que Chodorow (op. cit.) e Rich (1995) são exceções dignas de nota.
Por exemplo, o livro de Adrienne Rich “Of Woman Born. Motherhood as Experience and Institution”, primeiro publicado em 1986 e com várias reimpressões posteriores, considerado um clássico no campo de estudos sobre maternidade, embora não se conte com tradução em português, destaca-se pela tese de que há que se destruir a maternidade como instituição social, mas estar atento para sua potencialidade como experiencia que pode ou não ser prazerosa e socialização para resistências. enfatizando a ambivalência de afetos na relação mãe e filhos. Reflete Rich sobre sua experiencia e como o vir a ser mãe é louvado por familiares e amigos enquanto ela, gravida, não saberia o que esperar e se queria ou não um filho: “Sentia como estar cumprindo um ritual, atendendo a uma velha questão: ser mãe é o destino de todas as mulheres”
Observa que a culpa já se instala durante a gravidez. No seu caso porque teve catapora, e considerava que seu corpo estaria falhando para com um ser ainda não nascido, vulnerável, mas que após o parto a catapora teria sido diagnosticada como uma alergia, “possivelmente à gravidez”. Em forma de diário descreve prazeres de ter um bebê e a angustia por não conseguir ser mais a escritora que era, além de ser mais percebida por amigos e parentes como a “boa mãe de uma linda e indefesa criatura”. Também se refere a dimensões de seu cotidiano silenciadas pelos que lhe admiravam como mãe, como a divisão sexual de trabalho, a dupla jornada e a carga com trabalhos domésticos não reconhecidos como trabalho. (Ver sobre a atualidade de tal reflexão para o caso Brasil, entre outros em Araujo e Gama, 2017.)
Considera que os nexos entre o patriarcado e a maternidade assumem várias formas e que as mulheres mães compensariam a falta de poder que tal ordem lhes impõe, com o exercício de autoridade sobre seus filhos. Porém advoga que a maternidade como experiencia pode ser gratificante, se não entendida como uma obrigação, se as mulheres tiverem o domínio de seus corpos e mais, se se comunicarem entre si para desvendar as comuns estratégias de modelação social da maternidade e compreenderem que a reprodução biológica não tem que necessariamente ser vivida como uma tirania, um dever. Feição essa associada à maternidade como instituição, tida como estruturante e necessária para a sociedade, modelada por ordem patriarcal ou seja por hierarquias não questionadas, idealizada e acriticamente vividas. Como feminista radical, ou seja, radicalmente contra o etos patriarcal, Rich não se acomoda em determinismos e termina o livro com mensagem sobre possibilidade de mudanças. Utopia?:
O que é espantoso, o que pode nos dar enorme esperança e crença em um futuro em que as vidas de mulheres e crianças serão reorganizadas e retecidas pelas mãos das mulheres, é tudo o que conseguimos resgatar, de nós mesmos, para nossos filhos, mesmo dentro da destrutividade da instituição. […] A batalha da mãe pelo filho – com a doença, com a pobreza, com a guerra, com todas as forças da exploração e barateamento da vida humana – precisa se tornar uma batalha humana comum, travada no amor e na paixão pela sobrevivência. Mas, para que isso aconteça, a instituição da maternidade precisa ser destruída. As mudanças necessárias para tornar isso possível reverberam em todas as partes do sistema patriarcal. Destruir a instituição não é abolir a maternidade. É liberar a criação e o sustento da vida no mesmo reino da decisão, da luta, da surpresa, da imaginação e da inteligência consciente, como qualquer outra obra difícil, mas livremente escolhida.
(Rich, 1995, p. 280. Original em ingles. Tradução e destaque meus.)
REFERÊNCIAS
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ARRUZZA, Cinzia Ligações Perigosas. Casamentos e Divórcios entre Marxismo e Feminismo. São Paulo, Usina, 2019
BADINTER, Elizabeth O Conflito. A mulher e a mãe, Record, São Paulo, 2011
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BORGES, Charlene “Maternidade negra, ética de cuidado coletivo e políticas públicas” In GELEDES, 26.3.21, https://www.geledes.org.br/ – consultado em 27.03.21
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FEDERICI, Silvia O Ponto Zero da Revolução. Trabalho Doméstico, Reprodução e Luta Feminista. São Paulo, Elefante, 2019
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RICH, de Adrienne Of Woman Born. Motherhood as Experience and Institution, W.W.Norton & Co., New York, 1995.