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Maternidade: amor, sonho, desejo ou obrigação? Curso da Escola As Pensadoras discute o ser mãe e suas questões sociais

Ser mãe e a vida doméstica são ensinadas quase como uma obrigatoriedade para a vida das mulheres. Desde meninas elas são instruídas que isso é uma “habilidade”, “um instinto natural”. Entretanto, a maternidade nem sempre foi um costume, papel tido como inato para as mulheres. Por algum tempo, elas tiveram controle sobre seus corpos e gestações, conheciam e sabiam o que fazer para evitar e interromper a gravidez. Mas, em determinado momento, os homens, a igreja, a sociedade se apropriaram dos corpos e decisões das mulheres para servirem aos seus próprios interesses. Como nos conta Silvia Federici, em seu livro O Calibã e a Bruxa.

E essa retirada do poder de escolha das mulheres, foi uma das responsáveis por limitá-las a vida doméstica, as transformaram em seres inumanos, as impediram de ocupar espaços de poder, influenciou na violência praticada contra elas, e em várias outras situações machistas enfrentadas na sociedade patriarcal.  Atualmente, com a retomada do discurso sobre a descriminalização do aborto no Brasil, é comum ouvir discursos rasos, em que a vida da mulher importa menos que a de um feto. Em que a justificativa de prenderem uma pessoa por causa de um aborto, é por que a mulher não pode decidir por si só o desejo de ser mãe, ela deve gerar e parir sem sua própria vontade. E pouco se fala do aborto paterno, dos tantos pais que abandonam seus filhos, porque para a sociedade somente a mulher é responsável pela geração e cuidados com as crianças. 

Neste mês de outubro, As Pensadoras propõe um debate sobre a teoria da reprodução social, nas aulas da professora e doutora Mary Garcia Castro, no curso Mulheres e a Reprodução Social da Vida – debates em distintos gêneros e perspectivas feministas sobre algumas dimensões: cuidados, o trabalho doméstico e a maternidade. O objetivo da formação é discutir a reprodução social e suas implicações para a vida em sociedade, considerando os vários temas relacionados.

Segundo Mary, o poder de dar a vida e cuidar dela, ou de não querer exercê-los, ao serem compreendidos como os mais importantes para a reprodução das instituições, historicamente passou a ser controlado pela Igreja, pelo Estado, pelo Homem, ainda que o meio de produção de tais poderes sejam da mulher. Desqualificar tais poderes, que são defendidos por meio de afetos, mitos sobre a superioridade masculina, medos do sagrado, além de culpas, são mecanismos usados para que a mulher não se dê conta que pode dizer não, que pode resistir e se rebelar contra dominações patriarcais, racistas e capitalistas, destaca a professora.

“Meu útero, meus trabalhos de cuidados e meus afetos não são propriedades públicas nem privadas, nem têm a obrigação de produzir. As teorias feministas sobre reprodução social desmistificam “verdades” sobre que trabalhos têm e não tem valor; contam outra história, questionando o patriarcado institucional e as violências sexistas” afirma a professora Mary Castro.

No curso enfatizam-se novas propostas, abordagens contemporâneas em distintos campos do conhecimento, por meio de autoras mulheres.  Expondo o lugar do gênero em suas conexões com classe e raça, e em debates tidos como relativos à família, ao privado. Justificativas usadas e ordenadas por interesses patriarcais e modelados pela ideologia universalizante de que tal trabalho de cuidado pertence à esfera naturalizada do não valor, ou ‘trabalho de mulher’.

Quer conhecer a fundo a discussão? Inscreva- se no curso Mulheres e a Reprodução Social da Vida. As aulas serão on-line, pelo Google Meet, e começam no próximo dia 13. Os encontros ocorrerão nas noites de sextas-feiras e nas manhãs de sábados de outubro.

Associadas no Plano Margarida Alves podem fazer o curso gratuitamente, estudantes e outras associações ganham desconto. Saiba mais e se inscreva no link: https://aspensadoras.com.br/plataforma/cursos/mulheres-e-a-reproducao-social-da-vida-debates-em-distintos-generos-e-perspectivas-feministas-sobre-algumas-dimensoes-cuidados-o-trabalho-domestico-e-a-maternidade/

Professora Mary Garcia Castro

Tem pós-doutorado em Sociologia pela Unicamp e em Estudos Culturais pela CUNY – University of New York. Concluiu seu doutorado, também em Sociologia, na University of Florida.  É pesquisadora sênior na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais -FLACSO-Brasil e pesquisadora visitante emérita na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) , além de ser professora aposentada da Universidade da Bahia (UFBA). Desenvolve pesquisas sobre feminismos, trabalho doméstico remunerado, reprodução social, e estudos comparativos de autoras afrodiasporicas, norte-americanas, europeias e brasileiras sobre o tema maternidades.

Confira abaixo uma entrevista com a professora sobre o curso e o tema que será ministrado:

As Pensadoras: Quais correntes do feminismo abordam a teoria da reprodução social?

Mary Garcia Castro:  Várias, como a esquerda; os críticos ao capitalismo; Feminismo para os 99%; feminismos decoloniais – como o comunitário e de formulações por autoras afro diaspóricas e de feminismos negros; feminismo emancipacionista e feminismos socialistas.

AP: Quais as feministas que se destacam nessa pesquisa?

MGC: Helleith Saffiotti, Suely Carneiro, Silvia Federici, Cinzia Arruzza; Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser, Oyeronke Oyewumi, entre outras.

AP: Por que a desvalorização do trabalho doméstico é benéfica para os homens?

MGC: A desvalorização do trabalho doméstico é básica para legitimar a divisão sexual do trabalho e do poder, constructos do patriarcado e do racismo. À medida que se considera que o trabalho doméstico seria ‘habilidade natural’ das mulheres, que não depende de conhecimentos especializados, com resquícios do escravagismo, ou seja, “trabalho de negras”. O trabalho doméstico remunerado no Brasil é uma ocupação em que a maioria são mulheres negras.

AP: Quando se criou a ideia de instinto materno e da maternidade compulsória?

MGC: Segundo Elisabeth Badinter em “O Conflito A Mulher e a Mãe” (2011) e em “Um amor Conquistado. O Mito do Amor Materno” (1985) de Adrienne Rich, e em “Of Woman Born. Motherhood as Experience and Institution” (1995) a ideia de que a maternidade seria um “instinto” da mulher é um dos mais antigos mitos, presentes em várias culturas, ainda que em algumas tal mito enfatiza a maternidade como uma potencialidade de reverter o poder masculino.

Já a maternidade compulsória é própria de religiões fundamentalistas, estados autoritários em tempos de baixa fecundidade, mas sendo então mais eficiente, quando é estimulada por culpas – não está cumprindo, quando a maternidade é negada, um dever mariano (em escritos da Igreja católica) e com a pátria-caso do nazismo que pregava a importância de reprodução dos de raça ariana.

AP: Porque o controle do corpo da mulher é negado a elas?

MGC: O corpo da mulher é tido como território de subversão, de desejos que fogem a normas heteronormativas, e que possibilita escolhas, como o ter ou não filhos, que arrisca poderes como da Igreja católica, do Estado, e do cônjuge. Safiotti em o Poder do Macho bem discute tal tema

AP: Por que é o corpo da mulher defendido pela Igreja e sociedades patriarcais?

MGC: A mulher tem o poder de escolha, e de ir contra um princípio da reprodução básico para a Igreja, “crescei e vos multiplicai”. Então há que controlar tal poder, que é antagônico ao do pai, da lei, do Estado e do cônjuge. O corpo da mulher é objetificado para produção, inclusive por socialização para domesticar desejos e críticas, de seres dóceis que reproduzem o status quo. 

Suely Carneiro Em “a Força da Mãe Negra” (2015) bem ilustra a complexidade e a potencialidade de rebelião de ordens patriarcais e racistas, inclusive por outro tipo de espiritualidade, que foge ao binarismo que secundariza o corpo da mulher e codifica a maternidade como obrigação.

Oxun, Iansã, Obá, Ewá, Iemanjá, Nanã conformam arquétipos que alargam e complexificam nossa compreensão do feminino. Cada orixá personifica uma linha de força da natureza, um papel na divisão sexual e social do trabalho, um conjunto de características temperamentais e emocionais. A existência de orixás femininos, masculinos e andróginos expressa uma compreensão profunda da própria sexualidade humana. Os indivíduos concretos serão percebidos do ponto de vista de seus caracteres psíquicos básicos, de sua ação concreta sobre o real e das múltiplas possibilidades de combinações desses componentes.

Esse sistema de representações, particularmente suas mulheres míticas, oferece vivências que a sociedade machista nega. O conservadorismo cristão, que moldou a moral brasileira passada, impôs às mulheres a escolha entre os estereótipos da Virgem Maria e de Maria Madalena. Do ponto de vista patriarcal, esta última só encontra redenção ao abdicar de sua sexualidade. As deusas africanas legitimaram a transgressão dessa dicotomia maniqueísta. As deusas africanas são mães dedicadas e amantes apaixonadas.”

AP: Por que o aborto é tão mal-visto?

MGC: Porque dá à mulher possibilidade de escolha entre ser ou não mãe, e foge de controles religiosos, de uma moral castradora de desejos que reduz o corpo da mulher a uma máquina de parir cidadãos dóceis. Mas lembremos que os feminismos são a favor da descriminalização do aborto, e não necessariamente a favor do aborto como método de controle da natalidade.

AP: Como a homossexualidade se insere na teoria da reprodução social?

MGC: Em especial as feministas decoloniais, como por exemplo Yuderkis e Langonis, inscrevem sexualidades não heteronormativas como importantes para outras sociedades, que fujam da reprodução social patriarcal. 

AP: O que é a teoria da reprodução social?

MGC: Simplificando, já que este é um tema complexo, e com diversas abordagens, mesmo no campo que lhe dá origem, o marxismo. De fato, a reprodução é uma temática central no marxismo. Em textos de Marx, como o Capital, a teoria de reprodução social focaliza como o capitalismo se reproduz, com ênfase em dimensões econômicas, como acumulação do capital, compra da força de trabalho, exploração dessa força e formação do lucro. Para o marxismo clássico, é importante compreender a reprodução do capital para estruturar a revolução, ou combater ao marxismo, via luta de classes. 

Já no marxismo contemporâneo, como as formulações de Althusser nos anos 70, além da questão do lucro pela exploração da força de trabalho e da dominação de uma classe por outra classe social, a teoria da reprodução da sociedade capitalista também discute o que chama de Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Tanto os que o Estado usa diretamente para repressão, como aqueles da sociedade civil, que colaboram para a reprodução ideológica de um Estado capitalista, como a família, a escola, os partidos políticos, os sindicatos, entre outros.

Para compreender mais sobre a teoria da reprodução social, ou a reprodução da sociedade capitalista, sugiro, entre outros: o livro de 2017 de Louis Althusser, “Sobre a Reprodução”.  Publicação que mais vou explorar no curso das Pensadoras.

AP: Quem falou pela primeira vez da teoria da reprodução social, em perspectivas feministas?

MGC: Não saberia datar a origem do debate como teoria da reprodução social em perspectivas feministas. Mas os debates dos anos 70 sobre o valor do trabalho doméstico, não remunerado e remunerado (em artigo veiculado na New Left Review), muito contribuíram para que se estruturasse tal teoria.

Em Castro (op cit) destaco:

Elaborações sobre o trabalho doméstico e o marxismo não se resumem à  termos da polêmica registrada na New Left Review, sendo que  outras  autoras  insistem que haveria que sair do que consideram o “economicismo” da intelectualidade marxista do século XX (por exemplo, Mitchell , 1966 cit. in Mendes, 2017)  e dos     autores no debate na Revista New Left Review (Miles, 1983 e Rubin, 1993   cit. in Mendes, 2017): “[…] explicar a utilidade das mulheres para o capitalismo        é uma   coisa; afirmar que esta utilidade explica a gênese da opressão da mulher é    outra            bastante diferente” (Rubin, 1993, p. 4).

O trecho destacado acima, de Gayle Rubin, 1993, será aprofundado durante o curso.

Ainda na década de 70 houve um debate impulsionado por feministas, muitas de orientação marxista, como Silvia Federici – ainda que ela revisita a teoria marxista sobre reprodução social, mas aceitando alguns princípios e questionando outros, como  aquele que considera que o capitalismo, inclusive via salário, se encarrega da reprodução da força de trabalho – sendo portanto básico o debate sobre valor de troca, inclusive do que chama “a mercadoria força de trabalho, desconsiderando assim  a importância do trabalho doméstico da mulher  e os seus cuidados, tidos como apenas gerando valor de uso. 

Como bem coloca Federici: “E como é produzida a força de trabalho?”  In Castro (trecho retirado de um livro meu, de 2023, que será debatido no Curso das Pensadoras):

O trabalho doméstico há muito é tema de debates entre   feministas marxistas, sendo que para muitos autores do campo, esse não teria sido apreciado nas considerações originais de Marx e Engels sobre valor e reprodução da força de trabalho e enquadrado como improdutivo. Defendem que seria o trabalho doméstico básico à produção/reprodução tanto da força de trabalho como da própria vida e sua representação ideológica, haja visto o papel das mães e das ‘babás’ na socialização e cuidado das crianças. Entre autores que enfatizam a importância da reprodução para a acumulação capitalista, vem se destacando feministas de perspectivas decoloniais como Federici (2017 e 2019).

Segundo Federici (2017: 12): Os três tomos de ‘O Capital´ foram escritos como se as atividades diárias que sustentam a reprodução da força de trabalho fossem de pouca importância para a classe capitalista, e como se os trabalhadores se reproduzem no capitalismo simplesmente consumindo os bens comprados com o salário. Tais suposições ignoram não só o trabalho das mulheres na preparação desses bens de consumo, mas o fato de que muitos dos bens consumidos pelos trabalhadores industriais – como açúcar, café e algodão – foram produzidos pelo trabalho escravo empregado, por exemplo, nas plantações de cana brasileiras.

AP: Quais livros você indica para quem quer aprofundar sobre a temática?

MGC: Na ementa, para cada uma das seis partes do curso indico referências, acrescento a recente publicação no Brasil, “Teoria da Reprodução Social. Remapear a Classe, recentralizar a opressão” org por Tithi Bhattacharya” Ed. Elefante, São Paulo, 2023; e no site da FENATRAD (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas), o e-book aí incluído, em 2023, sobre o serviço doméstico remunerado no Brasil.

Destaco que o tema cuidado vem ganhando força, inclusive no debate de políticas públicas, tendo sido criada uma Secretaria de Cuidados, e sobre o tema (como indico na ementa) há muitas publicações recentes no Brasil como as de Helena Hirata, Nadya Guimarães, Clara Araújo, entre outras. Ressalto a visão panorâmica sobre o tema, em texto disponível na internet, o site da CLACSO-, BATTHYANY, Karina. Mirada Latinoamericana a los cuidados, Siglo XXI, Mexico, 2020.